A relação Igreja e Estado foi sempre conturbada.
O Cristianismo nasceu da ruptura de Jesus com dois estados: o Sinédrio judaico, pelo qual foi condenado, e o poder romano, pelo qual foi executado na cruz.
Durante três séculos os cristãos, perseguidos pelo Império Romano, foram obrigados a manifestar sua fé nas catacumbas.
Em 313, o imperador Constantino deu um golpe de mestre: devido à popularidade dos cristãos, aliou-se a eles.
A Igreja não converteu Constantino à fé cristã.
Foi o imperador romano que converteu a Igreja às mordomias imperiais.
É o que retratam as cartas de São Jerônimo.
Os bispos passaram a merecer a honra de príncipes, e o papa se tornou monarca absoluto, a ponto de, em 800, o papa Leão III coroar o imperador Carlos Magno, fundador do Sacro Império Romano-Germânico, que dominou a Europa pelos sete séculos posteriores.
Ao longo da história, Estado e Igreja sempre tentaram cooptar um ao outro, como o comprova o período colonial brasileiro até 1872, quando o imperador tinha a prerrogativa de nomear bispos.
Na União Soviética, após tentativa fracassada de erradicar a religião, Stálin se empenhou em cooptar a Igreja Ortodoxa Russa, sem sucesso.
Nos países capitalistas, fez-se um acordo de cavalheiros.
O Estado concede privilégios à Igreja, como isenção de impostos e direito de manter escolas e universidades que mercantilizam a educação.
A Igreja, por sua vez, adota obsequioso silêncio diante das mazelas e dos abusos do Estado.
Frente ao distanciamento crítico dos bispos em relação ao socialismo, certa vez um deles indagou se meu propósito era ver a Igreja apoiar a Revolução.
Respondi que o papel da Igreja, segundo o Evangelho, não é dar apoio ou se opor ao Estado. É servir ao povo, sobretudo os mais pobres e excluídos, como fez e propôs Jesus.
Caso o Estado oprima o povo, haverá inevitável conflito com a Igreja, como ocorreu no Brasil após a ditadura militar promulgar o AI-5.
Caso o Estado sirva e promova o povo, haverá harmonia entre as duas instituições.
O direito do pobre é o critério evangélico de avaliação do Estado.
Nessa sociedade secularizada e plural, a Igreja não tem o direito de pretender impor seus preceitos por via da lei civil, nem querer reduzir os espaços de outras denominações religiosas.
Uma Igreja que coloca seus interesses corporativos e patrimoniais acima das necessidades e dos direitos do conjunto da população não entendeu a proposta do Evangelho.
Jesus foi enfático: “Vim para que todos tenham vida e vida em abundância” (João 10, 10). Leia-se: alimentação, saúde, educação etc. para todos.
Ele não disse: “Vim para privilegiar vida a meus discípulos, e os demais que se virem.”
O aparelhamento do Estado por religiões é um retrocesso histórico que reacende fogueiras inquisitoriais.
A prova que tudo isso ainda não mudou está na prefeitura do Rio, Marcelo Crivella, bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, promoveu reunião secreta com mais de 200 pastores evangélicos, a 4 de julho, para instruí-los sobre o uso da máquina estatal, a fim de obterem vantagens a templos e fiéis, como isenção de impostos e prioridade em exames de saúde.
O abuso resultou-lhe em pedido de impeachment por parte do legislativo carioca.
E agora o prefeito religioso tenta se vingar,começando pelas demissões de seus acusadores.
Por
Frei Betto
Frei Betto é escritor, colunista do DEBATE, autor , em parceria com Mário Sérgio Cortella, de “Sobre a Esperança” (Papirus), entre outros livros.
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